Sabará reage à polêmica com bandeirante
À esquerda estão por toda parte: uma placa, uma casa do século 18, um monumento de bronze, o nome do quarteirão, o complexo de ruas em construção e, claro, muitos vizinhos o possuem. Em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, a história de Manuel de Borba Gato (1649-1718), o pioneiro de São Paulo, é imortal em vida e paisagem, chegando a Sabará em 1674, onde fundou Arraial de Santo Antônio do Bom Retiro da Roça. Grande, o principal centro de educação da futura cidade.
No momento em que Borba Gato é chamado de “genocida e assassino de indígenas”, tendo a estátua em sua homenagem queimada em São Paulo (SP) em 24/07, as discussões sobre o bandeirante se aquecem no município mineiro e de Norte a Sul do país, pelas redes sociais. Se para uns é hora de passar a história a limpo, mesmo que a ferro e fogo, para outros não se pode apagá-la com violência, muito menos julgar o passado com as leis do presente ou descolar os personagens do seu tempo. São necessários, portanto, pesquisas e debates, mas, sobretudo, entendimento.
Para compreender melhor a polêmica, que culminou em São Paulo na prisão temporária de Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Paulo Galo, após o ataque ao monumento, o Estado de Minas visitou Sabará, tendo como guia o professor e pesquisador da história local José Arcanjo do Couto Bouzas. Ouviu também os professores universitários e autores de livros sobre a história de Minas Adriana Romeiro, Luiz Carlos Villalta e Alex Boher.
Como ponto de partida da controvérsia, a argumentação de Paulo Galo, publicada na imprensa: “Para aqueles que dizem que a gente precisa ir por meios democráticos, o objetivo do ato foi abrir o debate. Agora, as pessoas decidem se elas querem uma estátua de 13 metros de altura de um genocida e abusador de mulheres”.
Bandeirantes em Minas
Morador do Centro Histórico de Sabará e com especialização em arte e cultura barroca, José Arcanjo do Couto Bouzas defende que não se deve tentar destruir um monumento, como ocorreu em São Paulo em 24 de julho.
“Os bandeirantes chegaram à região das minas a fim de encontrar ouro, por isso aprisionavam indígenas para o trabalho escravo, numa época em que a mão de obra escravizada negra ainda não se fazia presente em Minas – o que ocorreria logo em seguida. Esse era o objetivo principal daqueles homens broncos, ousados, que viviam armados e andavam descalços. Mesmo que não fossem heróis, não podemos enxergá-los com os olhos da atualidade”, defende.
Bouza ressalta que nada justifica o racismo e a escravidão, mas, há mais de 300 anos, esses crimes de hoje não eram levados em consideração. “Mais do que nunca, é preciso estudar a história, evitar erros de interpretação. Um povo que não conhece sua história está fadado a repetir seus erros, o que é muito perigoso”, acredita.
Sobrado e nome de Rua
Em um giro pelo Centro Histórico de Sabará, cidade que se tornou Vila do Ouro há 310 anos, as homenagens ao sertanista marcam ruas e prédios públicos. A primeira parada ocorre na frente do sobrado da Casa Borba Gato, na Rua Borba Gato, no qual há um anexo do Museu do Ouro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Bouza explica que o casarão tem apenas o nome do bandeirante, sem qualquer ligação com sua trajetória. “A denominação se deve ao fato de a Câmara Municipal, ao comemorar o bicentenário da elevação de Sabará a Vila, em 1911, ter batizado esta rua com o nome do paulista descobridor das minas do Rio das Velhas. No imaginário popular, ali teria morado o bandeirante.”
Genro do bandeirante Fernão Dias (1608-1681), o “Caçador de Esmeraldas”, que, por sinal, dá nome à rodovia que liga Belo Horizonte a São Paulo, Borba Gato viveu por muito tempo, segundo Bouzas, na localidade hoje chamada Santo Antônio de Roça Grande. “Podemos dizer que era o ‘manda-chuva’ da região, pois ocupou cargo de superintendente das Minas do Rio das Velhas, quando ainda não havia aqui casas de fundição de ouro ou intendência. As bandeiras foram a primeira iniciativa privada em Minas, com recursos particulares e aval da Coroa Portuguesa”, explica.
Estátua de bronze de Borba Gato
A próxima parada se dá no monumento ao bandeirante, localizado na Avenida Prefeito Vitor Fantini. “Quem vai julgar Borba Gato é a História”, reflete Bouzas diante da estátua de bronze afixada em pedras de minério e com um verso de boas-vindas aos visitantes: “O heroico bandeirante de outras eras/De Sabará descobridor”.
É diante da figura em bronze homenageada em 1961, que vem à tona a acusação que pesou sobre o paulista. Ele seria responsável pelo assassinato de dom Rodrigo Castelo Branco, fidalgo espanhol a serviço do Império Português na região das minas, o que provocou sua fuga por muitos anos.
Já perto da ponte sobre o Rio das Velhas, a mensagem “Sabará – Terra de Borba Gato” está impressa no concreto do complexo viário de General Carneiro, obra em execução pela prefeitura local. Há outras manifestações culturais no paredão, mas, neste momento, essa sobressai devido ao fato ocorrido em São Paulo, denominada “capital bandeirante”.
Opiniões controversas nas ruas
Nas ruas de Sabará, as opiniões são diversas, mas sempre contrárias à depredação de monumentos. “Vandalismo não é resposta para nada. A solução está em trocar ideias, conversar, jamais destruir o patrimônio. Se uma pessoa não concorda com a história contada, que então conte sua versão, mas nunca com violência”, defende a professora de matemática Joceli Josefa Gonçalves do Carmo, ao passa, no início da tarde de uma quarta-feira, diante da Casa Borba Gato.
A poucos metros, descansando na hora do almoço, a estudante de administração Larissa Gonçalves, de 21 anos, falou sobre o polêmico episódio: “Se o monumento está num local, independentemente de o homenageado ter sido bom ou mau, é porque registra um fato histórico. Assim, precisa ser retratado para esta geração e para que as próximas tirem suas conclusões. Extremismo é prejudicial.”
Larissa lembra que Ruy Barbosa (1849-1923), quando ministro da Fazenda, assinou um despacho (em 14 de dezembro de 1890), ordenando a destruição de documentos referentes à escravidão chamada de “instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral”. A estudante conclui, guardadas as devidas proporções: “Esses documentos, hoje, seriam da maior importância para estudarmos mais o período da escravidão no Brasil”.
Cantor, compositor e sambista conhecido na cidade, José Eustáquio Silva, o Mandruvá, mostra, na tela do celular, o vídeo sobre a queima da estátua no Bairro Santo Amaro, na Região Sul da capital paulista, no qual se ouve a frase gritada por um homem: “Chora, Borba Gato!”. Ele conta, com um jeito bem mineiro de falar, que ficou surpreso, pois a imagens eram acompanhadas da palavra fascista.
“Vou ser curto e grosso: O que vai adiantar hoje se fazer este movimento? Não vai dar em nada. Eu não ‘culio’ com qualquer tipo de violência. Acho que a melhor saída está na educação para o povo”. “Culiar”, em bom “mineirês”, significa compactuar, estar associado a alguém ou tipo de situação.
“Não livro a cara dele”
Guia de turismo há muitos anos, o também comerciante Rubens Pires, o Binha, lembra que Borba Gato não era nenhum santo, tendo sido suspeito pela morte de dom Rodrigo. “Não livro a cara dele. Na verdade, quem livrou a cara dele foi a Coroa Portuguesa, que não o prendeu.”
Poder, respeito e uma vida nebulosa
Autora de vários livros sobre a história colonial mineira, incluindo um sobre a Guerra dos Emboabas (1707 a1709), a professora Adriana Romeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que Borba Gato ainda é um personagem muito desconhecido para os historiadores, embora com um papel importante na colonização de Minas, e muito respeitado. “Gozava de grande prestígio. Era ele quem mandava”, afirma a professora, esclarecendo que “estava longe de ser um herói”.
Conforme relatos históricos, os sertanistas eram caçadores de indígenas, os quais matavam e escravizavam. “Mas não sei se queimar estátuas é a saída, a solução. Acredito que o mais indicado é abrir o debate sobre as questões, os momentos da história. Na verdade, mesmo sendo paulista, Borba Gato tem muito mais importância na história de Minas do que no seu estado de origem.”
A ressignificação dos monumentos, com explicações mais detalhadas sobre quem realmente o personagem foi e seu lugar na história pode ser um caminho, segundo o professor de história da arte, Alex Bohrer, do Instituto Federal de Minas Gerais em Ouro Preto, na Região Central, também autor de vários livros, incluindo “O discurso da imagem”.
“Os monumentos marcam uma época que não podemos esquecer, mas sempre é preciso conhecer os dois lados”, afirma. Para Bohrer, a peça queimada já traz uma marca histórica, mas o ideal é que algumas sejam levadas para um museu. Vale destacar que um empresário se ofereceu para restaurar o monumento.
O passado sob os olhos do presente
Segundo o professor de história da UFMG Luiz Carlos Villalta, quando se rememora o passado, seus fatos e personagens, parte-se sempre de questões, tensões e olhares do presente, dos valores que se tem. “Personagens e fatos cultuados num tempo, por exemplo, podem ser tidos como repugnantes em outro. Embates ou descobertas feitas no presente, muitas vezes, impactam grupos e a sociedade como um todo”, explica.
Villata destaca o fato recente, no Canadá, onde se descobriram corpos de crianças indígenas que foram enterradas de forma clandestina e que haviam passado por internatos católicos. “Políticos, inclusive o primeiro-ministro Justin-Trudeau, manifestaram seu horror com o ocorrido no passado e cobraram da Igreja Católica um pedido de perdão. Grupos de descendentes de índios e/ou seus defensores promoveram a derrubada de estátuas das rainhas Vitória e Elizabeth II. Tudo isso mostra como a memória é terreno de disputa.”
Villalta observa que, no Brasil de hoje, a questão indígena é central. E o sucedido com a estátua em São Paulo exprime essas tensões. “Manuel de Borba Gato foi um sertanista paulista. Os sertanistas se dedicaram a apresar indígenas e a procurar pedras e metais preciosos. Em 1682, Borba Gato veio a assassinar o nobre dom Rodrigo Castelo Branco, nomeado administrador-geral das minas. Em seguida, fugindo das punições, se embrenhou pelo sertão e, como fugitivo, passou a viver à moda de um cacique indígena. Por ter encontrado ouro, depois, em 1700-1701, negociou o perdão para seu crime com o governador. Envolveu-se, mais tarde, na Guerra dos Emboabas.”
Toda essa trajetória aos olhos do hoje, marcadamente de descendentes de índios e de escravizados, pode soar controvertida, diz o professor. “Com certeza, é preciso considerar o personagem em sua própria época, mas também entender que o lugar que lhe atribuímos em nossa memória hoje implica visualizarmos que valores consagramos. Enfim, o que se fez com a estátua se explica por uma questão de valores e de disputas em torno da memória, por uma agenda e por questões que afligem grupos historicamente marginalizados na história do Brasil”, afirma.
Via: Estado de Minas